terça-feira, 22 de janeiro de 2008

un coeur sans mur

Sempre quem conta uma história junta seus cacos e os ordena. Por esse motivo pode interpretar os sinais, os atos, de forma errônea.
Sendo assim, quero deixar claro que nem a conheço muito bem. Algumas vezes dividimos o mesmo ambiente, a mesma sala; além da infância.


Era bailarina, diziam que era deusa coroada, que tinha os olhos de doçura angelical e até o diamante mais puro do mundo sentiria inveja de como ela reluzia. Tinha as mãos finas, leves como um passarinho. Mas de que adianta as asas para um pássaro que não pode, não quer voar?
Primeiro acharam que era cólera. Os sintomas eram parecidos, mas o mal-estar dos intestinos só vinha até certo horário e em certos dias. A moça vivia em meio a tios, primos, irmãos e eles, como a maioria, não sabiam diferenciar um intestino mal-criado dos males que um coração abarrotado causava ao corpo. Precisaram de um especialista - em cólera, claro – para deixar claro que o problema da moça estava no peito e não na barriga.
O pai da jovem vítima da cólera do coração fez de tudo para descobrir quem era o culpado de deixá-la naquele estado. Contratou duas feiticeiras que prometeram arrancar o verme do amor de seu coração. Não conseguiram. Foram expulsas pela própria moça debaixo de gritos e injúrias.
O dono das terras de seu coração, essa terra que ninguém anda, era um soldado muito valente. Diziam que o rapaz estava a serviço dos surdos de coração e astutos de mente. Ela recebia seus telegramas todo dia por volta das cinco horas da manhã e as vezes passava a noite em claro com as vísceras rebeldes e as rezadeiras tentando acalmar o peito.
As horas duravam dias e ela ia descobrindo que os clichês eram assim chamados por um motivo. E descobriu também que alguns desavisados confundiam clichê com a verdade.
Um dia, no entanto, o telegrama não chegou. A moça piorou muito, mulheres corriam pela casa com baldes de água morna e deixavam poças que mais pareciam sangue por causa do cimento vermelho. Na verdade, esse dia ainda é lembrado pela confusão causada tanto na casa como na cidade.
A doença da moça tinha se agravado de tal forma que ninguém percebeu o furacão que se aproximava. Os ventos sacudiam as cortinas e levantavam as saias das mulheres com tanta freqüência que os meninos da casa vizinha se enfiavam debaixo das anáguas enquanto brincavam de se esconder. A loucura era tanta que um dos meninos tentando se esconder sob a saia da mais velha acabou derrubando-a com o balde que trazia. Todas vieram ajudar e por alguns segundos a apaixonada ficou sozinha.
Alguns dias depois as crianças que brincavam em meio às folhas que voavam na praça acabaram contando que viram a jovem caminhar para fora da casa. Disseram que ela parecia em perfeita saúde, que pulava entre os rodamoinhos e, sem que eles soubessem explicar como, depois de uma rajada de poeira que os obrigou a fechar os olhos, ela andava de mãos dadas a um rapaz, que mais parecia um príncipe, em direção à saída da cidade. Sumiu para sempre.

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