quinta-feira, 12 de junho de 2008

Liga da Justiça... gramatical

Era mais um dia comum na Portuguelândia. A Mulher Gramática (manterei sua identidade em sigilo) passava uma tarde no parque com seu complemento nominal. Aproveitavam o dia ensolarado e o céu azul turquesa para transformar o ar fresco em palavras muito leves e em mesóclises muito queridas. Porém, tudo estava prestes a mudar. O Alerta Aurélio foi disparado denunciando que um crime terrível estava as portas de acontecer na cidade, e ela teve que partir. Era muito cruel para a Mulher Gramática deixar seu complemento nominal e se tornar intransitiva de forma tão cruel e desalmada. A Vida, substantivo próprio, nunca tinha de fato a pertencido; ela é que fazia parte da vida alheia sem que o mel de outros olhos fossem de fato seus, ou sem que ela pudesse também ser o complemento de alguém.

A emergência na cidade se tratava do grande vilão, o Dr. Inscrivinhante, que corrompia criancinhas loucas por açúcar para o uso errado de acentos e atirava proparoxítonas nos pais desesperados que tentavam se proteger com simples escudos pronominais. Vã tentativa, os erros de português do Dr. Inscrivinhante amarguraram as águas dos rios assim como o coração dos habitantes. A cidade tinha se tornado um depósito de cinzas negras de antigos corações amantes de regras que costumavam fazer das palavras sem nexo companheiras de ausências.

A Mulher Gramática se deu conta do momento ímpar pelo qual a cidade passava; e os problemas iam além de erros gramaticais. Falando e escrevendo com tantos erros, cada habitante acabava por criar uma língua própria e se afundando na solidão de universos particulares em forma de bolha. Nossa heroína finalmente se deu conta que o Dr. Inscrivinhante queria deixar esse mundo, vasto mundo, mudo. Sendo assim, ela se armou, respirou coragem, para que se espalhasse pelos pulmões e pelo sangue, e deu início a uma das maiores batalhas entre Perspicácia e Ignorância (duas gigantes, as armas da Mulher Gramática e do Dr. Inscrivinhante) jamais vista.

A briga foi árdua. Os pessimistas apostavam na força da Ignorância, em como ela era uma força primeira, onipresente, enquanto os otimistas, mesmo fundamentados na bravura da Perspicácia e em sua inteligência, tinham suas dúvidas quanto a vitória. Era de conhecimento geral que a Ignorância era complacente e tornava o mundo mais agradável para os que nela viviam, só não acreditavam, ou se recusavam a enxergar, que a inteligência ilhada por Ignorância de nada serve.

Mulher Gramática sentia-se fraca, com pernas de chumbo, cansada de travar uma luta pelos livros e para as palavras; desiludida. Nesse momento de descrença lhe veio à mente uma arma usada em poucas ocasiões, somente em momentos propícios e necessários de fato: o raio de Neologismo. Essa arma, inventada há séculos, era uma das maiores criações da Perspicácia e só em momentos ímpares, quando não existia nada mais para ser usado, o raio era a arma da vitória.

O Neologismo teve o resultado além do esperado. Dr. Inscrivinhante não resistiu ao seu próprio veneno, a invenção de palavras, misturada com a sagacidade que só a Perspicácia possui. Aos poucos as crianças voltaram à escola e a cidade foi reconstruída. Os complementos, tanto verbais quanto nominais, voltaram aos seus lugares de direito, os acentos fugitivos estavam outra vez na Prisão dos Colchetes e Parênteses e até as aspas puderam voltar a cumprir o papel designado pelos “homens do poder”. A vida voltava ao normal, até a Mulher Gramática e seu complemento nominal passaram a virar uma locução adjetiva para, depois de algumas borboletas amarelas, virarem um singelo e açucarado adjetivo.

E o mundo do português estava a salvo mais uma vez!

Um comentário:

Anônimo disse...

Aahh a infância... Esse tipo de "conto" é o meu predileto. "Nerd" ou não, gosto desse tipo de historinha desde pequena... e viva os bons tempos! (e as boas lembranças!)
Um brinde a você que sempre me traz memórias agradáveis. =)