quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Ah, essas revoluções pessoais...

O céu estava azul, pelo menos era o que a luz refletida no chão de cimento fazia parecer. Era a única entrada de ar e, pelos motivos óbvios, ficava no alto e era pequena. Na medida em que o sol mudava de posição, a luz se aproximava de seu rosto até que encontrou seus olhos e o despertou. Um dia novo na vida velha.
Tudo estava como de costume na cela cinza que era seu lar há dez anos. Ele continuava naquele espaço onde conhecia todas as rachaduras do cimento do chão e onde as paredes descascadas formavam desenhos que ele reconhecia de olhos fechados; ele e seu colega de cela, Maruli.
A noite tinha sido complicada. Uma nevasca inesperada de começo de Primavera caiu durante toda a noite. Comentavam que há décadas não era registrado tanto frio nessa época do ano. O sol do dia seguinte, com aquela intensidade, fazia com que o frio da noite anterior fosse uma antiga, distante lembrança. Contudo a questão que afligiu a todos naquele dia foi algo inexplicável. Até hoje comentam o que teria acontecido para que, do dia para a noite, Samuel só falasse rimando. Era contra a sua vontade, já que não sabia escrever ou ler, o fato de até obedecer à métrica e toda vez que quisesse falar sobre algo ele o fazia em forma de soneto.
Os mais supersticiosos associaram esse novo hábito de Samuel com a nevasca incomum. Outros diziam que era culpa da Aurora Boreal e os mais crentes em poesia acharam que ele tinha simplesmente tomado gosto por uma parte singular da vida. Esses mesmos poetas da Ala B quiseram, através de Samuel, provar que todos podem ser poetas, mas desistiram depois que se deram conta da provável perda de status que teriam por não mais “deterem” a poesia. Assim os poetas da Ala B trataram de criar o apelido de Bem-te-vi para Samuel e divulgar como aquele comportamento era estranho. Em alguns dias passou a odiar seu novo modo de falar e a forma como o tratavam não ajudava em nada.
Na primeira semana acharam que os poemas de Samuel era uma forma de se comunicar em código sobre alguma fuga. Proibiram que falasse dessa forma e, como era só assim que conseguia falar, fez consigo mesmo um voto de silêncio. Só Maruli parecia apreciar a fala de Samuel e o fazia com um brilho no olhar digno de uma criança. Ele sim parecia ter tomado gosto por essa parte singular da vida.
Aos poucos foram se esquecendo do novo dom de Samuel, até porque ele se mantinha em silêncio, mesmo com os protestos de Maruli. Esse, aliás, implorava toda noite para que eles conversassem e, mesmo relutante, Samuel o fazia. Via no amigo uma pessoa com quem simplesmente pudesse conversar sem ser julgado, além de poder falar nessa língua de poemas de som tão doce e fresco com que tinha se acostumado e aprendido a gostar.
Maruli era sem dúvida seu maior fã. Sabia ler e escrever e, subornando alguns guardas, conseguiu papel e lápis para ensinar o amigo a também poder ler e escrever. Conseguiu, mesmo com certa dificuldade, já que não era bom professor e só podiam estudar na parte da noite. No entanto, em pouco tempo Samuel já conseguia passar seus poemas para o papel, mesmo com alguns erros. E assim ele virou poeta.
Maruli dizia que era visível a mudança do amigo. Os olhos brilhavam com mais força, já que ele sabia fazer a amargura e a solidão saírem pelas pontas dos dedos. Dizia até que Samuel era capaz de fazer de uma ofensa uma obra de arte e que poucos eram capazes de fazer injúrias e ter o coração doce.
Na semana seguinte correram boatos sobre uma fuga em massa. Diziam que cavavam um buraco na Ala A que levaria direto para bem longe das celas e onde, de fato, eles poderiam ver a lua de forma descente. Um dia antes do que seria a grande fuga, com medo doa boatos serem verdadeiros, foi ordenada uma revista geral em que acabaram achando o tal buraco. Mesmo o caminho de fuga começando bem longe de sua cela, Samuel foi acusado de ser um dos mentores da fuga por causa de motivos escusos e que, diziam, tinham a ver com as vontades dos poetas da Ala B.
Samuel foi interrogado e nada disse, e nem poderia dizer quem nada fez. Em represália ao silêncio, métodos, digamos, não-ortodoxos foram adotados. Entenda, o ódio também deve ser extravasado; e existem muitas maneiras de fazê-lo.
Convencidos de que aquela fuga tinha algo a ver com o principal homem procurado pela polícia, eles logo o associaram à Samuel, que nada dizia. Assim, jogos psicológicos, gritos e outras medidas não convencionais de interrogatório foram tomadas. Samuel parou de rimar, involuntariamente, da mesma forma que começou. O brilho sumira e a solidão e a amargura pareciam cada vez mais retidas nas pontas das unhas e, se acumulando, passavam pelo peito, boca e olhos. Maruli estava desolado por ver seu amigo daquela forma, com olhos cinza de raiva e cansaço. Quando as pessoas pareceram perversas demais não existia muito em que acreditar.
Samuel andava cada vez mais apático com os interrogatórios que continuavam sem que soubessem se era devido a algo substancial, ao hábito ou raiva que saia pelos dedos desses homens, cravando as unhas. E, dessa forma, ele voltou ao voto de silêncio.
Mas assim como a nevasca aparentemente trouxe doçura com flocos brancos, no final do Verão uma chuva destruidora caiu na região; e caiu por três dias seguidos. Maruli ficou um dia inteiro do lado de fora tomando chuva e gritando os poemas de Samuel que já tinha decorado. Os poetas da Ala B riam e comentavam que a loucura reservada pelos homens do interrogatório para Samuel acabou passando pelo ar e suor para Maruli. Ele só voltou para a cela no meio da noite quando Samuel, indignado e ainda em silêncio, ficou parado na frente do amigo fitando-o nos olhos por cinco minutos. Maruli abaixou a cabeça, deu um sorriso e voltou com Samuel para a cela.
Depois da grande chuva as Alas mais pareciam cercadas por verdadeiros jardins imperiais. Os homens do interrogatório finalmente acharam o culpado da possível fuga do lado de fora. Samuel finalmente foi deixado em paz, para satisfação de Maruli, mas continuou em silêncio. Diziam que era para aumentar a fama que ele já possuía de ser desses homens que conseguem fazer da natureza um reflexo do peito, mas Samuel preferia continuar quieto por simplesmente não sentir necessidade de sair do silêncio. Antes ele se sujeitava a isso por revolta e para parecer mais forte enquanto as lágrimas encharcavam as maçãs do rosto, mas agora não.
Era possível dizer que Samuel virou um desses que, digamos, estranha a própria alma. Se antes demonstrava amor à poesia, ou até mesmo à Maruli, agora tinha passado a amar tudo; as árvores com suas folhas que caem nas calçadas, os pássaros e seus cantos aos domingos de manhã e o sol cheio de carícias com suas mãos mornas em nossos rostos. Talvez agora gostasse de tudo porque justamente tudo cheirava à poesia. Samuel virou uma figura mitológica que em seus “tratados poéticos” escrevia verdadeiras cartas de amor e, como deveria ser, todas ridículas. Naturalmente, assim como esses sentimentos esdrúxulos.

Nenhum comentário: